Arquivo do mês: abril 2015

AVENTURAS DE UM DISEUR

MÃOS DADAS : UM DVD DE POESIA LUSÓFONA           

                                                      

                                                           Lauro Moreira                             

Capa do DVD

Capa do DVD

Não sou poeta, hélas! não escrevo versos – é certo que já escrevi, quando muito jovem, mas o respeito pela Poesia foi sempre tão grande que desisti logo de a continuar maltratando… Passei a ser então apenas um leitor encantado e assíduo, além de um ledor exibido, um diseur que não perdia, e até hoje não perde, a oportunidade de interpretar poemas alheios, desde que tenham, ao menos ao meu juízo, a imprescindível qualidade literária.

Ao longo da vida, sobretudo a partir da adolescência, quando comecei a fazer teatro em peças colegiais e mais tarde em grupos amadores no Rio de Janeiro, dediquei-me à tarefa de divulgar a obra de grandes criadores da poesia em língua portuguesa, não só do Brasil como de todo o mundo lusófono, através de apresentações em colégios, academias, universidades, casas minhas e de amigos, etc. Aos dezenove anos e inspirando-me numa apresentação análoga de Paulo Autran, decidi realizar um recital solo no Rio de Janeiro (com direito a uma estreia off-Broadway em Goiânia, Anápolis e Itaberaí, durante as férias de fim de ano em Goiás), com poemas de Gonçalves Dias (o longo Y Juca-Pirama na íntegra), Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Mário de Andrade, Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Drummond, entre outros de igual quilate. Foi para mim uma epopeia: duas horas de um espetáculo dividido em três atos, tudo devidamente decorado e ensaiado. Mas a acolhida do público compensou o esforço e incentivou-me a seguir por esse caminho…

Ingressando, depois de concluir a Faculdade de Direito da PUC-Rio, na Carreira Diplomática, passei a unir realmente o útil ao agradável, divulgando no exterior – sempre que as tarefas específicas dos Postos me permitiam – através de palestras e recitais, o que de melhor havia na poesia lusófona, em um sem número de apresentações na Argentina (meu primeiro posto), Estados Unidos, Espanha, Marrocos e finalmente Portugal, além de Cabo Verde, Angola, Santo Tomé e Príncipe e Guiné Bissau. Os espetáculos, individuais ou acompanhado de colegas e amigos de posto que eu acabava quase que docemente constrangendo a participar, eram, quando necessário, bilingues, com os textos recitados em português e em seguida no idioma local. No caso de Barcelona, por exemplo, em que chegamos a criar um grupo de jograis formado por funcionários do Consulado do Brasil, dizíamos os poemas em português, castelhano e catalão.

Mais um Recital em Lisboa, no Centro Cultural de Malaposta (Odivelas)

Mais um Recital em Lisboa, no Centro Cultural de Malaposta (Odivelas)

Um caso muito curioso, no entanto, ocorreu bem mais tarde, quando lancei no Brasil o meu primeiro CD, um álbum duplo intitulado Mãos Dadas, reunindo obras de 28 poetas de todos os países de língua portuguesa (sete à época, 1997, já que o Timor Leste não era ainda um país independente). Fiz uma apresentação inaugural no Rio, a convite da Academia Brasileira de Letras, seguida de turnê (ou como dizem nossos amigos portugueses, de uma digressão) por algumas capitais, incluindo São Paulo e Brasília, e cidades do interior do país, além de Lisboa e Cabo Verde. Com uma generosa cobertura da midia, o recital acabou gerando um interesse surpreendente, a ponto de esgotar a edição inicial de três mil exemplares do CD. E certo dia, um cidadão rumeno residente em São Paulo telefona para meu gabinete no Itamaraty em Brasília, para saber onde poderia adquirir exemplares do disco, pois tinha a intensão de levá-los para Bucareste e presentear alguns amigos e instituiçõe culturais. Uns três meses depois, recebo com grande surpresa uma carta da Rádio Nacional da Romênia, comunicando que meu CD estava sendo utilizado em um programa transmitido em língua portuguesa. Mais surpreendente ainda foi quando, anos depois, a Embaixadora da Romênia em Brasília, ao sermos apresentados, confessou que aprendera o Português ouvindo sobretudo o tal programa e os poemas de meu disco.

Recital na Embaixada de Portugal em Brasília

Recital na Embaixada de Portugal em Brasília

Mas a estória não acaba aqui: certo dia, logo depois da mencionada carta que me fora enviada pela Rádio, recebo diretamente uma comunicação do Museu de Literatura da Romênia, convidando-me a fazer um recital em Bucareste. Em seguida, entra em ação o nosso atuante Embaixador brasileiro naquele posto e ex-Ministro da Cultura do Governo Itamar Franco, meu amigo Jerônimo Moscardo, insistindo para que eu atendesse ao convite – o que me parecia impossível, por falta de tempo e de oferecimento de transporte… Até que um dia, como Diretor do Departamento Cultural do Itamaraty, viajei oficialmente a Paris para a reunião da Assembleia Geral da UNESCO, e uma vez concluída a missão, comprei os bilhetes meu e de minha mulher e viajamos para Bucareste. O que então se passou foi algo de fato surpreendente e absolutamente inédito em minha vida de “diseur”. Com o apoio de três instrumentistas do Conservatório local de música, convidados por nosso Embaixador Moscardo, que promoveu inclusive a tradução dos poemas para o Rumeno e as cópias distribuídas ao público no final da sessão, apresentei um recital de grandes poetas da lusofonia para uma numerosa e atenta plateia que superlotava o salão – e que, com as raras exceções de alguns professores universitários e dos Embaixadores do Brasil e Portugal, nada falavam Português… Fiquei muito impressionado com o que vi e vivi naquela noite, quando a força da poesia acabou criando um momento de absoluta magia. Ainda hoje, revejo às vezes a gravação do recital realizada pela televisão rumena, e não deixo de me admirar.

Recital em Lisboa (2013) com a apresentação de Älma Lusitana, de Alberto Araújo

Recital em Lisboa (2013) com a apresentação de Älma Lusitana, de Alberto Araújo

Anos mais tarde, em 2004, lancei-me em nova aventura discográfica, preparando um CD com poemas de Manuel Bandeira, na voz do próprio Poeta, gravados certa noite em minha casa no Rio de Janeiro, em um antigo gravador doméstico. Bandeira era um amigo querido, que havia sido inclusive padrinho de meu primeiro casamento, com a poeta Marly de Oliveira. A incrível história dessa gravação orginal e seu lançamento em CD 36 anos depois (!) já foi contada neste Quincasblog, no post intitulado Falemos um pouco de Poesia: Manuel Bandeira, o Poeta em Botafogo, publicado em setembro de 2014, o que me dispensa de repetí-la agora para os meus generosos leitores, a não ser para recordar que participei pessoalmente do projeto, interpretando 26 outros poemas em homenagem ao autor de Pasárgada.   Dois anos mais tarde, voltei aos estúdios para gravar um álbum duplo com 120 poemas dessa Poeta admirável que foi Marly de Oliveira. Esses últimos CDs, à semelhança do Mãos Dadas, foram também apresentados em dezenas de recitais no Brasil, Portugal e outros países lusófonos.

Recital na Academia Brasileira de Letras, com a obra de Marly de Oliveira

Recital na Academia Brasileira de Letras, com a obra de Marly de Oliveira

Por outro lado, sempre tive uma certa resistência à ideia e convites para gravar DVDs de poesia, por acreditar que a palavra poética foi feita para ser lida ou ouvida, e que os eventuais movimentos de câmera, os cortes, as variações de planos acabavam por distrair o espectador, desviando sua atenção do essencial, que é o verso, o poema. Quem acabou me convencendo de que não era bem assim foi meu amigo, poeta e cineasta Alberto Araújo, ao propor-me uma experiência bem sucedida de gravar com ele um DVD, quando eu vivia ainda no Marrocos e ele acompanhava, em 2003, uma turnê do nosso Grupo Solo Brasil, com o espetáculo Uma Viagem através da Música do Brasil que eu havia criado para mostrar a plateias estrangeiras o que há de melhor em nossa música. Pouco tempo depois de retornar ao país, meu amigo me surpreende com um DVD a que ele deu o título de Lauro Moreira: Tecendo Palavras. Vi, ouvi e confesso que me convenci de que, com sensibilidade e conhecimento do realizador, os movimentos de câmera, os cortes pouco usuais e as mudanças de planos podem até mesmo contribuir de modo importante para que o espectador possa deixar-se envolver ainda mais pelas palavras, pelo poema. Vários poemas desse DVD foram colocados no You Tube e tem sido bastante visitados.

Com a querida amiga e grande atriz Denise Stoklos, após recital no SESC/São Paulo

Com a querida amiga e grande atriz Denise Stoklos, após recital no SESC/São Paulo

Mas tanto eu quanto meu amigo Alberto Araújo (que escreveu e dirigiu recentemente o longa-metragem Vazio Coração, com Murilo Rosa, Lima Duarte, Beth Mendes, Othon Bastos, entre outros), estávamos convencidos de que aquela experiência marroquina deveria ser complementada e consolidada com a realização de um segundo DVD, mais abrangente e contando com mais recursos técnicos. E assim nasceu o projeto, também intitulado Mãos Dadas, inicialmente gravado em minha casa em Brasília há algum tempo, mas só recentemente concluído, com os adendos que sempre julguei fundamentais, referentes à vida e obra de cada um dos 19 poetas lusófonos ali selecionados. Tenho para mim que se trata talvez do primeiro DVD do gênero lançado no Brasil.

Com a pianista Moema Craveiro Campos, no recital Uma Geografia Poético- Musical do Brasil, apresentado em Portugal, Brasil e Cabo-Verde

Com a pianista Moema Craveiro Campos, no recital Uma Geografia Poético- Musical do Brasil, apresentado em Portugal, Brasil e Cabo-Verde

E assim, lá vou eu seguindo sem descanso essa agradável missão que o destino me impôs de divulgar por onde tenho passado a rica e diversificada Poesia feita no Brasil e nos demais países de Língua Portuguesa. Neste momento, por exemplo, encontro-me em mais uma de minhas temporadas em Portugal, onde volto a realizar alguns recitais em Lisboa e outras cidades.

Finalmente, e para que os leitores amigos deste Quincasblog possam melhor conhecer a natureza e o resultado deste trabalho, decidi que a partir de hoje, e ao final de cada matéria aqui publicada, independente do tema tratado, incluirei, para visita dos interessados, os links no You Tube de dois poetas constantes deste último DVD, que reúne obras de alguns dos nomes mais significativos da Língua, começando pelo Classicismo de Camões, passando pelo Arcadismo de Gonzaga, pelo Romantismo de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Castro Alves, e chegando ao Século XX com Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Drummond, Bandeira, o caboverdeano Jorge Barbosa, Vinicius, João Cabral e Marly de Oliveira, entre outros. E tudo isso devidamente contextualizado por imagens e breves comentários crítico-biográficos que escrevi sobre cada um dos poetas interpretados.

Com a amiga e pianista Sonia Maria Vieira, participante do Recital Manuel Bandeira: o Poeta em Botafogo, na ABL.

Com a amiga e pianista Sonia Maria Vieira, participante do Recital Manuel Bandeira: o Poeta em Botafogo, na ABL.

Sarau em Lisboa, com o amigo e grande violeiro Roberto Correa (2010)

Sarau em Lisboa, com o amigo e grande violeiro Roberto Correa (2010)

Não sei se meus parcos leitores concordam, mas acho que assim o Quincasblog ficará mais completo e talvez mais agradável de se visitar, pois ao lado de minha pobre palavra escrita, poderão relembrar a beleza de versos imperecíveis. E para concluir, creio oportuno acrescentar uma breve reflexão que está incluída na capa interna do mencionado DVD, sobre o delicado tema da interpretação de textos poéticos.

Convido-os, pois, a visitar os links abaixo, para verem e ouvirem hoje um pouco de Camões e Tomás Antônio Gonzaga:

Capa interna do DVD

Capa interna do DVD

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A MORTE DE MANOEL DE OLIVEIRA

A MORTE DE MANOEL DE OLIVEIRA

     

                                          ou

                A GRATA LONGEVIDADE DOS MANOÉIS

Lauro Moreira

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Escrevo este post aqui de Lisboa, minha cidade cada vez mais do coração, para comentar com os leitores deste nosso Quincasblog, que o mundo perdeu ante-ontem não apenas um de seus grandes criadores, mas um dos artistas mais originais, e por isso mesmo, mais polêmicos de seu tempo. Original e polêmico como seu conterrâneo e contemporâneo Fernando Pessoa, Manoel de Oliveira enriqueceu ao longo de mais de um século o panorama cultural português e marcou indelevelmente a cinematografia mundial. E como Pessoa, e como Camões, tardou muito a ser reconhecido em sua própria terra, só o sendo a partir do instante em que se consagrou em terras alheias, sobretudo em França. Já tinha mais de 70 anos e vários filmes, quando apresentou em Paris o seu Amor de Perdição, transcrição literal do romance de Camilo Castelo Branco. Com o imenso sucesso de público e sobretudo de crítica, começou finalmente a ser reconhecido em Portugal. Caso bem parecido com o do nosso Villa-Lobos…

Manoel de Oliveira morreu aos 106 anos. E aqui já abro um curto parêntese: não sei bem porque, mas tenho a ligeira impressão de que em geral os  Manuéis (tal como os Manoéis) tendem a durar muito e sabem aproveitar o tempo para esparzir talento e sabedoria neste mundo mofino. Vejamos: em novembro passado foi-se-nos, aos 97 anos, o Manoel dos passarinhos e das coisas simples e inefáveis, o nosso Poeta do Pantanal, Manoel de Barros; o outro imenso Manuel (Bandeira do Brasil, segundo Drummond), meu inesquecível amigo e padrinho de casamento, Poeta que tocou e toca fundo a corda mais sensível da alma brasileira, morreu jovem aos 82 anos, e com apenas um pulmão desde os vinte e poucos; mais um Manuel, é o Vaqueiro Manuel, que foi não apenas personagem de Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim), mas um ser vivente de carne e osso, figura lendária que tudo sabia da vida e do Sertão das Minas Gerais, e que só entregou os pontos aos 93 anos de labuta. Pois é isso, meus caros leitores, os meus Manuéis gostam, graças a Deus, de ficar para semente, e nós é que lucramos.

Duas frases recolhidas de declarações recentes de Manoel Cândido Pinto de Oliveira: Parece que Deus se esqueceu de mim e A morte é um descanso. Porém, mais que essa idade provecta –  que fazia dele o mais idoso cineasta em atividade no mundo, com o primeiro filme realizado ainda na fase do cinema mudo, em 1931, (Douro – Faina Fluvial) e o último em 2014 (O Velho do Restelo), apresentado por ele em Cannes, em agosto passado – espanta-nos sua incrível vitalidade , que o levou a realizar mais de 60 filmes, 32 deles em longa-metragem. E olhem que houve longas pausas impostas por obstáculos criados pelo Estado Novo, como entre 1942 e 1956 e entre 1965 e 1972. Entretanto, como se estivesse a recuperar o tempo perdido, produziu praticamente um filme por ano a partir de 1979. Como via o cinema como um aliado inseparável da literatura e do teatro, valeu-se de grandes nomes da literatura lusófona e universal, seja em adaptações – por vezes absolutamente literais, palavra por palavra, como em Amor de Perdição ou em Le Soulier de Satin, de Claudel – seja como inspiração (Eça de Queiróz,  Agustina Bessa-Luis, Flaubert, Dostoievski, Dante, Nietzsche, Camões, Cervantes) e lançou mão  de importantes nomes da cena portuguesa e estrangeira, como Luis Miguel Cintra, Leonor Silveira, Maria de Medeiros, Miguel Guilherme, Ricardo Trêpa, Lima Duarte (no papel do Pe. Antônio Vieira em Palavra e Utopia), Irene Papas, Michel Piccoli, John Malkovich, Marisa Paredes, Catherine Deneuve… A simples menção a essa plêiade de autores e atores evidencia a abrangência da obra de Oliveira e o alcance universal de suas reflexões.

Alceu de Amoroso Lima, nosso Tristão de Athayde, ao comentar o aparecimento surpreendente e desconcertante de Clarice Lispector na cena literária brasileira, afirmou que os escritores em geral escreviam  na clave de dó, enquanto Clarice o fazia na clave de fá… Ou seja, a leitura de seu texto exigia uma adaptação do leitor a essa nova forma de expressão. Assim, a meu ver, acontece com a obra cinematográfica de Manoel de Oliveira – o que explica a resistência de boa parte do público. O cinema para ele nada tem a ver com passa-tempo, diversão ou coisa que o valha. A câmera é o seu instrumento de pensar e sentir o mundo, de refletir sobre os mistérios da vida e da morte, é o seu ágon da tragédia grega, onde ele, proto-agonista, lutador principal, debate as relações conflituosas com o destino. Todos os meus filmes mostram que, de facto, todos os homens entram em agonia no momento em que chegam ao mundo. Sou um grande lutador contra a morte. Passei a vida a observar a agonia, cada vez com mais experiência, com cada vez mais vontade de mostrá-la. Mas a morte acaba por chegar”, disse, em 1993. E tudo isso, através de uma estética e uma visão extremamente pessoais, com planos fixos e longuíssimos, personagens normalmente estáticos, exprimindo-se em empostação e postura não naturais, mas cênicas, teatrais, sublinhado tudo por uma música cuidadosamente selecionada e adrede composta, e em películas com duração de horas e horas. Em artigo publicado ontem no Diário de Notícias, o intelectual, ex-Ministro da Cultura e meu amigo José António Pinto Ribeiro, escreve com muita justeza que “Como acontece com todos os grandes mestres do cinema mundial, a obra de Oliveira é pessoal e, assim, ao mesmo tempo integradora e alheia a correntes e tendências, a modas e a classificações e apresenta-se, de forma quase sempre inesperada, muito à frente do seu tempo no que significa e no que intenta profetizar: enuncia sempre um olhar específico sobre a existência e sobre a criação artística.” Por outro lado, é o próprio realizador, em entrevista aos Cahiers de Cinéma, que reconhece “a influência de Buñel, Dreyer e de outros no meu cinema. Desde logo, o meu primeiro filme foi influenciado por Chaplin. Mas eu nunca tentei escondê-lo. É a minha cultura, a minha concepção da arte”.

A partida definitiva de uma pessoa com 106 anos de vida não pode naturalmente surpreender a ninguém, mas sempre entristece ver o apagar-se de uma chama que até há poucos dias ainda brilhava a ponto de acalentar planos para futuras criações, entre elas, a anunciada filmagem de um conto de Machado de Assis (A Igreja do Diabo). Portanto, fiquei triste ao tomar conhecimento dessa despedida, e diria mesmo que até surpreso, já que este Manoel me parecia realmente imorrível… Fiquei sabendo da notícia num almoço com os amigos portugueses Miguel Anacoreta e Mário Máximo, intelectuais atuantes e grandes incentivadores da Lusofonia. E, logo em seguida, comecei a recordar em silêncio as poucas vezes em que tive a oportunidade de estar pessoalmente com o nosso cineasta que acabava de partir. Poucas, porém marcantes para mim.

A primeira foi há exatos trinta anos, ou seja, em 1985, quando ambos éramos bastante mais jovens… Eu servia na Embaixada em Washington e fui ao Kennedy Center assistir, a convite do American Film Institute, à apresentação do filme Le Soulier de Satin, com a presença do realizador. O primeiro grande espanto: só o filme, sem contar os debates a seguir, duraria sete horas! Para ser mais preciso: seis horas e cinquenta minutos. Como cinéfilo desde a adolescência, só me lembrava de ter visto um filme mais longo, o Guerra e Humanidade  (ou A Condição Humana), o magnífico painel pacifista de Masaki Kobayashi (1959), com nove horas de duração, embora dividido em três partes, apresentado nos tempos gloriosos do extinto (claro!) Cine Paissandú, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Só que eram três sessões, em três dias consecutivos, para se ver o filme completo. Agora, não, iríamos ver o Le Soulier de Satin (O Sapato de Cetim) em um só dia, começando pelas dez da  manhã, saindo às treze, no intervalo para o almoço, e retomando às 15hs para enfrentar as quase quatro horas finais. Segundo surpreso, ao menos para mim, até então um ignorante completo em matéria de Manoel de Oliveira: o filme é rigorosamente a apresentação, em um pequeno palco de um pequeno teatro, da longuíssima peça de Paul Claudel, drama amoroso que se passa durante o Século de Ouro espanhol, com cenários de papel e os atores estáticos. Segundo anotações de João  Bénard da Costa, professor, crítico, programador e diretor por muitos anos da Cinemateca Portuguesa, falecido em 2009: «Quase sete horas de duração, planos geralmente longuíssimos, no limite material da duração do “magasin”, câmara normalmente imóvel, impondo um único ponto de vista sobre personagens que, também normalmente, estão estáticas e se falam sem se olhar e sem olhar para a câmara, fixando um algures indefinido e insituado; uma extensíssima sucessão de “recitativos” ou “ariais” em que uma só personagem (tantas vezes) se espraia em falas de intensa e tensa duração, um filme de um cineasta português, quase integralmente falado em francês e em que se descortina mal a possibilidade de qualquer artifício (dobragem ou legendagem) “traduzir” essa língua; um texto ideológico e esteticamente avesso a qualquer moda ou gosto dominante, são estas as aparências exteriores do “opus magnum” do cinema português».

Paul Claudel, escritor e diplomata francês, que serviu inclusive no Rio de Janeiro em 1916, irmão da excelente e infeliz escultora Camille Claudel, era um católico fervoroso, que se converteu um dia no interior de uma Igreja, ao ter “de súbito o forte sentimento da inocência, da eterna juventude de Deus, uma revelação inefável.”  E acrescenta:  Acreditei com tal força, com tal adesão de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com tal certeza sem deixar lugar a qualquer espécie de dúvida que, depois, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não puderam abalar-me a fé, nem mesmo, para ser mais preciso, tocá-la de leve que fosse.” Antes disso, em uma Ode a Dante, havia escrito:

“É humilhante sofrer a imposição da grosseira máquina corporal quando sabemos que fomos feitos para comandá-la,

E é idiota a vanglória da carcaça de que somos inquilinos desconfortáveis.”  

Abri novo parêntese para essas citações porque tenho para mim que o também  homem de fé Manoel de Oliveira identificou-se de certo modo com esse espírito claudeliano. Ao final da apresentação do filme no Kennedy Center, respondendo a perguntas do público, o cineasta fez uma afirmação que me deixou boquiaberto, afirmação que só vim a compreender melhor ao conhecer  depois outras obras suas, e que poderia ser resumida no conceito de que  cinema é apenas teatro filmado. Mais tarde (1993), ele diria: “O cinema é um fantasma da vida que não nos deixa senão uma coisa sensível, concreta: as emoções”. E ainda: “Os rituais são muito importantes. Sem eles, a vida seria indecifrável. O cinema não filma senão isso, um conjunto de signos, de convenções. A vida é um enigma, não é legível. São os rituais que nos permitem lê-la”.

A segunda vez que vi Manoel de Oliveira  foi  já em Lisboa, em 2008, quando exercia o cargo de Embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Após assistir a uma sessão de homenagem a Luis Miguel Cintra (por coincidência o mais constante ator dos filmes de Oliveira), estava na calçada em frente ao Instituto Camões, à Avenida da Liberdade, quando vejo aproximar-se dois senhores que desciam a rua, um deles sacudindo  airosamente uma bengala que lhe servia talvez para espantar mosquitos, caminhando lépido, a passos firmes, e conversando com animação. Quando passam por mim, dou-me conta de que se tratava do homem que acabava de celebrar seu centenário de vida, e que mal teve tempo para as homenagens que os amigos de sua adorada cidade do Porto queriam prestar-lhe, já que estava inteiramente envolvido em mais uma de suas produções anuais…Foi uma visão rápida, mas que me ficou naturalmente gravada na memória.

Em 2010 aposentei-me na Carreira Diplomática e retornei ao Brasil. Mas já no ano seguinte voltava a Lisboa para a primeira de várias temporadas, que espero poder repetir sempre que possível. Chegamos por coincidência no dia da abertura da segunda edição do FestIn, o Festival Itinerante de Cinema da Língua Portuguesa, a cuja criação em 2009/2010, havíamos emprestado o apoio da Missão do Brasil junto à CPLP. Naquela noite seria apresentado o novo filme de Manoel de Oliveira, O Estranho Caso de Angélica, antecedido de uma especial homenagem ao realizador, cujo nome passaria doravante a designar a sala principal do tradicional Cine São Jorje, sede do Festival. A primeira surpresa foi a de que estávamos, com as respectivas esposas, hospedados no mesmo hotel, de modo que nos encontramos na recepção minutos antes de nos dirigirmos ao evento. A segunda, que nem posso chamar de surpresa, foi a maneira fluente e descontraída com que pronunciou suas palavras de agradecimento, em meio a uma multidão entusiasmada que se apertava no espaçoso saguão do São Jorge. O filme, escrito e realizado por esse jovem homenageado de 103 anos, havia sido também escolhido para a abertura do segmento Un certain regard no Festival de Cannes de 2010. Foi essa a terceira e última vez que vi Manoel de Oliveira, ou seja, 26 anos após aquele encontro em Washington. E é bom não esquecer que depois de O Estranho Caso de Angélica, nosso amigo realizou ainda o longa O Gebo e a Sombra (2012) adaptado de uma peça de Raul Brandão, e o curta O Velho do Restelo, apresentado em Veneza e em mais uma dezena de Festivais de cinema mundo afora, e onde, segundo a sinopse, “Oliveira reúne num banco de praça do século XXI Dom Quixote, o poeta Luís Vaz de Camões e os escritores Teixeira de Pascoaes e Camilo Castelo Branco. Juntos, levados pelos movimentos telúricos do pensamento, eles deambulam entre o passado e o presente, derrotas e glórias, vacuidade e alienação, em busca da inacessível estrela”.

VOANDO NO PASSADO          

O jovem galã das moçoilas casadoiras

O jovem galã das moçoilas casadoiras

O campeåo do automobilismo

O campeåo do automobilismo

        Mas para que os queridos amigos e amigas do Quincasblog possam ter, se já não tem, um conhecimento adicional e  bastante surpreendente da vida incrível desse nosso personagem, deliciem-se com o que os jornais portugueses publicaram ontem sobre sua época de juventude:

Trapezista voador, piloto acrobático, campeão de salto à vara, galã sedutor… Muito antes da fama de realizador, já era conhecido por razões um tanto alheias à Sétima Arte. Nas revistas da época, por exemplo, a sua imagem de marca é a de um jovem de porte atlético e muito bem parecido, posando vestido com o fato que na altura era utilizado pelos praticantes de atletismo. E era tão bem parecido que, em 1929, a sua fotogenia já enchia páginas da revista “O Cinéfilo” e fazia suspirar os corações das jovens casadoiras.

De facto foi o desporto a primeira grande paixão de Manoel de Oliveira, que a ele se dedicou por inteiro quando tinha 20 anos. Mesmo mais tarde há imagens dele, de capacete de borracha, ao volante de um “Ford V8” de 3000 c.c, com o qual acabara de vencer, em 1937, o Circuito Internacional do Estoril.

No ano seguinte voltou às corridas de automóveis, desta vez no Brasil, tendo vencido o circuito da Gávea, no Rio de Janeiro”.

        Não é fantástico tudo isto?                     

Sempre o caso do profeta em sua terra...

Sempre o caso do profeta em sua terra…

                                 THE END

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