A GRANDE DAMA DE GOIÁS

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                                     A GRANDE DAMA DE GOIÁS

                                                                                                        Lauro Moreira

 “Durante cinquenta e três anos Belkiss cumpriu o que lhe foi reservado, como o de ser o símbolo de seu Estado. Percorreu uma carreira sem queimar etapas, com disciplina e esforço próprios, e justamente por isso deixou marcas indeléveis na memória dos goianos e da classe artística nacional.”    (Heitor Rosa)

 

 

  TRAJETÓRIA DE UMA VIDA DEVOTADA À ARTE

           No dia 20 de novembro de 2005, há portanto treze anos, o diário goiano O Popular publicava a seguinte triste notícia:

 “ A professora titular aposentada da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, a musicista Belkiss S. Carneiro de Mendonça, foi enterrada nesta quinta-feira (17/11) no Cemitério Santana, em Goiânia, em meio a muita emoção, homenagens e aplausos. O caixão foi coberto com as bandeiras da Academia Brasileira de Música, da Academia Goiana de Letras e da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (AFLAG), da qual Belkiss era membro fundadora. Dona de uma personalidade adorável, Belkiss era querida em todas as rodas da sociedade. (…) A professora Belkiss faleceu na quinta-feira de madrugada depois de ficar quase cinco meses em coma provocado por um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico ocorrido no dia 27 de junho. Desde então, a musicista esteve a maior parte do tempo internada na UTI do Hospital Neurológico.

 Pianista virtuose, a professora Belkiss teve uma carreira de sucesso que extrapolou as fronteiras e conquistou a admiração de público e da crítica no Brasil e no exterior em dezenas de concertos sendo motivo de orgulho para todos os goianos, e, principalmente, para seus colegas e pessoas que puderam partilhar de sua vida. Responsável pela formação de boa parte dos músicos goianos, ela ocupava a cadeira 17 da Academia Brasileira de Música. Viveu sempre em Goiânia, o que nunca a impediu de integrar o restrito ambiente musical, conquistar premiações e ser reconhecida pela crítica especializada. Era daqui que ela irradiava seus conhecimentos, enaltecia o nome dos compositores nacionais, como Camargo Guarnieri e Villa-Lobos, em concertos, palestras, apresentações-solo, gravações de programas de rádio na Europa e nos Estados Unidos, master classes e gravações de discos. (…)”

     Nos anais da Academia Brasileira de Música podemos ler que ela “Nasceu em Goiás, em 15 de fevereiro de 1928. Iniciou seus estudos musicais com sua avó Maria Angélica da Costa Brandão (Nhanhá do Couto), grande incentivadora da música no estado de Goiás. No Rio de Janeiro ingressou na Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, concluindo o curso em 1945, na classe do professor Paulino Chaves. Prosseguiu os estudos se aperfeiçoando com Joseph Kliass, Camargo Guarnieri e Arnaldo Estrella. Além de desenvolver carreira como pianista, dedicou-se, a partir de 1946, ao estudo e pesquisa da música brasileira, divulgando-a através de gravações, recitais, concertos, publicações, cursos, palestras e conferências em vários países da Europa e Américas.

 Em 1956 fundou o Conservatório Goiano de Música, do qual foi diretora. A instituição tornou-se, mais tarde, a Escola de Música da Universidade Federal de Goiás, da qual Belkiss foi professora. Seu trabalho como pesquisadora a levou a publicar o livro A Música em Goiás, em 1969. Como pianista seu trabalho ficou registrado, entre outras gravações, nos dois volumes do Panorama da Música Brasileira (1971 e 1977), com obras de Henrique Oswald, Villa-Lobos, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Fructuoso Vianna, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, Osvaldo Lacerda, Edino Krieger e Marlos Nobre. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, entre 1994 e 1997, da Fundação Cultural do Estado de Goiás e do Conselho Estadual de Cultura de Goiás. Recebeu a Medalha Couto Magalhães. Foi eleita para a Academia Brasileira de Música em 2002. Faleceu em Goiânia, em novembro de 2005.”

 

      A EMOÇÃO DO REENCONTRO

            Esta foi muito resumidamente a trajetória artística da Professora Belkiss Spenziere Carneiro de Mendonça, minha queridíssima e iluminada Dona Belkiss, cujo desaparecimento nos doe fundo até hoje.  Sobre ela quero agora falar, trazer meu testemunho sobre uma das personalidades mais notáveis com quem tive o privilégio de conviver em toda minha já longa vida. Quando criança de nove, dez anos, antes de deixar Goiânia para seguir meus estudos em São Paulo, lembro-me dos comentários que então ouvia de meus pais a respeito de uma jovem e brilhante pianista que a todos encantava por seu talento e simpatia, recém-casada com o já famoso médico  Dr. Simão Carneiro, alguns anos mais velho que ela.

          Os meus parcos porém fieis leitores que tiveram a paciência de seguir um pouco de minha vida através das peripécias narradas neste nosso Quincasblog, talvez ainda se lembrem que depois de estudar cinco anos em São Paulo em regime de internato, voltando a Goiás apenas nos períodos de férias, mudei-me com a família para o Rio de Janeiro, onde cursei o Colegial e a Universidade, antes de ingressar na Carreira Diplomática. Com isso quero dizer que, até então, não chegara jamais a ter um contato pessoal com a Professora Belkiss, de cuja destacada atuação cultural continuava porém estando a par. Os anos foram passando, eu fui mudando de posto para posto (Buenos Aires, Genebra, Washington) até que retornei ao Brasil em 1986 para assumir o cargo de Chefe da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty em Brasília. Foi quando, num belo e jamais esquecido dia, recebi um pedido de audiência da pianista… Belkiss Carneiro de Mendonça!

         Foi um momento muito especial. Ela chegou acompanhada de um jovem extremamente simpático, que pouco mais tarde também -não bastasse ela! – acabou por ocupar um lugar muito especial no afeto meu e de Liana, minha mulher: Leonel, seu filho mais novo, arquiteto brilhante e fiel escudeiro de sua orgulhosa mãe. A visita, que trataria dos pormenores da agenda de apresentações da pianista em alguns países da América Latina, começou cerimoniosa e formal. Minha interlocutora não tinha ideia de quem eu era, naturalmente, e de propósito deixei a conversa correr por algum tempo sem me identificar. À certa altura, para sua grande surpresa, comentei que eu também era goiano. E quando declinei de que família era, confesso que fiquei tomado pela emoção e, mais ainda, quando percebi lágrimas em seus olhos, ao recordarmos o doloroso episódio do desaparecimento precoce e quase simultâneo de meus pais. Não foi evidentemente apenas um encontro para mim, mas um reencontro com um passado de mais de três décadas, um tempo em que eu era menino e meus pais estavam vivos. (Não consigo deixar de pensar em Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia de meus anos/ Eu era feliz e ninguém estava morto”). E o curioso é que só muito tempo depois me dei conta de que Dona Belkiss na verdade era apenas doze  anos mais velha que eu, e que hoje eu já sobrevivo um ano a ela, que partiu aos 77 anos.

 

    A GRANDE DAMA

         A verdade é que ficamos, Liana e eu, de tal modo encantados com essa Lady, que logo percebemos não se tratar apenas de uma Grande Dama do Piano Brasileiro, como diziam, mas de uma grande dama tout court, doce, educada, sensível, leal, elegante, culta, talentosa e generosa, embora de indisfarçavel modéstia e simplicidade. Em todo o Estado de Goiás não haverá talvez uma só pessoa com um mínimo de conhecimento que não tenha consciência do que significou e  sempre significará o nome de Belkiss Carneiro de Mendonça para sua terra, do mesmo modo que qualquer músico erudito do Brasil sabe perfeitamente de sua importância para a música e para a cultura do país. Disso estou convencido e posso também dar testemunho da admiração que sua arte sempre despertou em plateias mundo afora. Basta ver as resenhas críticas de seus concertos, recitais e gravações, publicadas por especialistas em países como Alemanha, França, Suíça, Áustria, Inglaterra, Portugal, Marrocos, Estados Unidos e inúmeros países da América Latina.

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Na Embaixada do Marrocos em Brasília: cerimônia de minha Condecoração 

         A partir do mencionado encontro no Itamaraty em Brasília (1986), eu e minha família, sobretudo minha mulher, passamos a estar frequentemente com Dona Belkiss, e não apenas no Brasil como no exterior. Durante nossas temporadas em Brasília (86/90, 95/2000, 2003/06) tivemos amiúde o prazer de receber sua visita em nossa casa, e cada vez que íamos a Goiânia, a primeira de muitas visitas era à sua bela casa na Av. Tocantins, onde passávamos horas a fio trocando ideias, fazendo planos ou simplesmente jogando conversa fora… Ali estávamos quase sempre com outros membros família, com os dois filhos e os netos que moravam vizinhos, com as sobrinhas e musicistas Annunziata e Elciene, nossa amigas constantes. Aliás, caberia aqui recordar uma noite maravilhosa, entre tantas outras, quando os escritores Miguel Jorge e Luís Fernando Valadares, com a colaboração de inúmeros outros artistas e intelectuais da terra, organizaram um sarau de música e poesia para comemorar o cinquentenário dessa Casa de Arte e Cultura, que nasceu e se desenvolveu junto com a cidade de Goiânia. Tenho até hoje uma completa gravação em vídeo dessa linda festa, na qual me coube dizer alguns poemas de um álbum duplo de CDs que eu havia lançado na época, intitulado Mãos Dadas, com 85 poemas de 28 poetas dos então 7 países de língua portuguesa (o Timor Leste não era ainda um país independente).

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   As amigas Fifia, Tânia, Liana, a neta Simone, D. Belkiss e a sobrinha Annunziata 

          Mas como aqui conversa puxa conversa, os primeiros passos para realização desse CD foram dados justamente na Cidade de Goiás, ao lado de Dona Belkiss, no momento em que passávamos uns dias na casa de férias de Tânia (Maria Luíza), outra figura admirável que, ao lado de Fifia (Maria Lucy) sempre acompanhou a eterna amiga Belkiss na realização de grandes projetos culturais, como o da criação do Conservatório Goiano de Música. Tenho comigo a crônica de Dona Belkiss – excelente cronista, diga-se de passagem – publicada mais tarde no jornal O Popular, em que ela discorre sobre os sucessivos momentos de criação do CD naqueles dias de férias, começando pela escolha do repertório dos poetas e poemas e a redação de um texto introdutório e de notas crítico-biográficas sobre cada autor para constar de um livreto anexo.

 

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Crônica sobre meu CD MÃOS DADAS 

     EM BARCELONA

         No final de 1990 fui designado Cônsul-Geral em Barcelona, inaugurando mais um período de intensa atividade profissional, sobretudo na área da cultura. Logo no primeiro momento, criamos o Clube da Música Brasileira de Barcelona, que ao longo de vários anos representou um admirável centro de divulgação não apenas de nossa música, como da literatura, do cinema e outras áreas culturais. Dali nasceu, por exemplo, o Grupo Som Brasil (que em língua catalã significa Somos Brasil), para apresentar o espetáculo Uma viagem através da Música do Brasil, que tive a satisfação de escrever e dirigir, com músicos brasileiros lá residentes e a participação de dois artistas locais. O espetáculo foi apresentado em nada menos que 22 cidades da Espanha, além de Barcelona, e, o que é mais interessante, acabou “reencarnando-se” mais tarde no fantástico Grupo Solo Brasil, que criei em 1999, quando dirigia o Departamento Cultural do Itamaraty em Brasília, formado basicamente por excelentes  músicos de Goiás e que já visitou 20 países e mais de 40 cidades brasileiras. Aliás, ocorre-me neste instante a reação adorável de Dona Belkiss ao assistir ao nosso espetáculo em Goiânia: Lauro, além de lindo e comovente, o seu espetáculo é muito elegante…

         Foi justamente no âmbito da programação do Consulado Geral e de seu mencionado Clube da Música que a pianista Belkiss Carneiro de Mendonça apresentou-se em um belo concerto no Teatro Casal del Metge, ovacionada por um público entusiasmado por sua interpretação de alguns dos mais importantes compositores brasileiros. Para concluir, executou magistralmente a empolgante Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, do compositor norte-americano L.B. Gottschalk, como de resto havia feito em várias outras récitas no exterior, como no Teatro Colón de Buenos Aires, e em concertos coincidentes com a celebração de datas pátrias do Brasil. Esse memorável recital de Barcelona deu-se quando da segunda visita que nos fez Dona Belkiss, já que da primeira vez que a recebemos, acompanhada por Leonel e Tânia, ela alcançara igualmente um reconhecido sucesso com a apresentação de uma Master Class no prestigiado Conservatório de Música local.

         Devo confessar que reconheço (mas não me arrependo, é verdade…) a insistência de meus apelos à generosidade de nossa amiga querida e artista insuperável, para que se apresentasse sempre que possível nos postos onde servi, contribuindo assim para abrilhantar ainda mais os nossos programas de promoção cultural. Minha mulher não deixava de me censurar, já que compromissos dessa natureza, em vista do conhecido zelo e  profissionalismo da pianista, implicavam invariavelmente em uma drástica redução em suas atividades de lazer… Mas como, de nosso lado, insistíamos sempre para tê-la como hóspede por temporadas mais prolongadas, acabava sobrando algum tempo para passeios memoráveis a sítios de maior interesse em diferentes países. Assim foi na Espanha, em Portugal e assim foi especialmente no Marrocos, onde também tivemos o privilégio de recebê-la em duas oportunidades, por um período de dois meses no total.

    

UM IMENSO INFORTÚNIO

         Mas nesta altura e com grande pesar vamos ter que entrar em uma fase de  imensa tristeza e dor para Dona Belkiss e para todos nós, seus conhecidos, seus amigos e seus admiradores. Refiro-me à morte de seu filho Leonel, em 1995, levado pela mesma enfermidade (leucemia) que anos antes  havia levado seu pai, Dr. Simão Carneiro. Já mencionei aqui o que todos sabiam, ou seja, que por completa afinidade esse filho era  para Dona Belkiss a constante companhia, a alma gêmea, a grande paixão, sem naturalmente diminuir o amor que tinha por Bruno, o filho mais velho. A luta de Leonel contra a doença foi impressionante. No tratamento tentou-se tudo que havia de mais recente e atual na medicina, inclusive a intervenção pessoal de um grande especialista norte-americano, que envolvia o aproveitamento de célula-tronco do cordão umbilical  de um recém-nascido. Mas infelizmente, após uma ótima reação inicial, o nosso Leonel não resistiu mais, deixando um vazio incalculável em sua mãe  e uma tristeza aguda para todos nós. Vazio que ela se recusava minorar com o lenitivo da música. Afastou-se do piano, parou de tocar. Mais ainda quando, para cumprir compromisso, assumido meses antes da tragédia, de realizar um recital em comemoração de uma data importante de uma empresa jornalística de Goiás, forçou-se de tal modo que, para consternação de uma imensa plateia, acabou sentindo-se mal e desmaiando em pleno concerto. Foi a gota d’água. Com grande pesar Liana e eu, que havíamos acompanhado muito de perto toda a via crucis da enfermidade, não estávamos ao lado  quando sobreveio a partida de Leonel, embora tenhamos chegado para sua Missa de Sétimo Dia.

 

  OUTRA VEZ NO BRASIL

          De 1995, quando voltamos de Barcelona,  a 2000, quando partimos para assumir a Embaixada no Marrocos, vivi algumas experiências extremamente importantes para minha Carreira e, mais ainda, para minha vida. Inicialmente, ocupei o cargo de Porta-voz do Itamaraty por alguns meses, depois fui cedido ao Ministério de Ciência e Tecnologia para dirigir sua Assessoria de Assuntos Internacionais. Em 97 voltei ao Itamaraty, convidado para o cargo de Diretor-Geral do Departamento Cultural e, por consequência legal, presidir a Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil. No âmbito dessas duas Chefias simultâneas, tive a oportunidade de contar várias vezes com a participação de Dona Belkiss em eventos culturais diversos, incluindo concertos em Missões diplomáticas estrangeiras em Brasília. Lembro-me sempre do espetáculo de música e poesia que apresentamos na Embaixada de Portugal, com ela ao piano em duo com seu amigo Moisés Mandel, violinista e spalla da Orquestra Sinfônica de Brasília, e eu na parte de interpretação de poemas. Foi um belo espetáculo com música e poesia de ambos os países, inclusive transmitido ao vivo por uma FM local.

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   Em Évora, Portugal: Tarcísio Costa, D. Belkiss, D.Alzira (sogra) e Liana       

 

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Alguns dos álbuns gravados por D. Belkiss

  Já no tocante ao programa do V Centenário, a Comissão Nacional e a Comissão Brasil-Portugal promoveram a realização e o relançamento de três álbuns de CDs de peças brasileiras para piano, interpretadas por Belkiss Carneiro de Mendonça, incluindo O Piano Brasileiro – Século XIX, com nada menos de 30 peças de 30 compositores, e o Panorama da Música Brasileira para Piano, com 15 compositores do século XX, de Henrique Oswald a Marlos Nobre, de Villa-Lobos a Cláudio Santoro, além de O Piano de Camargo Guarnieri e As Valsas para Piano de Camargo Guarnieri, todos criteriosamente distribuídos pelas Embaixadas brasileiras no exterior. E ainda no contexto da Comissão Bilateral Brasil-Portugal, cuja Seção Brasileira era também presidida por mim, tivemos a oportunidade de, em uma de nossas reuniões em Portugal (Évora), contar com a presença de Dona Belkiss, que se encontrava então em viagem pela Europa.

 

 

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                                   Passeio a Paraty: Liana e D.Belkiss

  Os amigos e amigas que frequentam as páginas despretensiosas deste nosso Quincasblog  já me viram certamente tocar por alto em um assunto que me incomoda sobremaneira. Refiro-me justamente à questão de nosso V Centenário, que tive o imenso prazer e a enorme responsabilidade de conduzir durante três anos de sonhos, lutas e realizações, e que por fim, em vista de obstáculos burocráticos (sejamos delicados) intransponíveis, decidi deixar o barco antes do naufrágio inevitável (para usar tanto uma linguagem figurada quanto literal), embora perfeitamente previsível. Em suma: o sonho virou pesadelo,  tomei a decisão de sugerir a dissolução da Comissão Nacional que havia sido criada em 1993, e repassamos tudo, inclusive as verbas, a duras penas obtidas para os projetos, para o Senhor Ministro do Esporte e Turismo… E todos conhecemos o desfecho da novela… Minha frustração pessoal foi imensa, não nego, e decidi pedir remoção para o exterior. Fui ser Embaixador no Reino do Marrocos, onde, como já disse, tive o prazer de realizar um trabalho extremamente gratificante.

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                                                   Em Parati

NO MARROCOS

         Antes de partir para Rabat, conseguimos convencer Dona Belkiss a nos visitar logo que lhe fosse possível. E para nossa alegria, foi logo possível. Pouco tempo depois de nossa mudança, comecei a estabelecer um ótimo relacionamento com o diretor do Conservatório de Música, lançando as bases para uma cooperação que só fez crescer e dar frutos ao longo de meus quase quatro anos de Posto. E lá fui eu em minha campanha não apenas para usufruir da presença de nossa amiga no novo país, como – minha eterna insistência!…- para contar com a arte da grande pianista brasileira em salas marroquinas. Falava-lhe por telefone com frequência, fazia as maiores chantagens (a Senhora me ajudaria muito a divulgar a música clássica brasileira neste país, eu até já acenei com uma eventual apresentação sua, etc.), mas ela se mantinha irredutível, alegando que se havia afastado definitivamente do piano. Não desisti, até que chegamos a uma solução de compromisso: ela daria uma Master Class aos alunos e professores do Conservatório. Diante disso (e já com más intenções futuras…) encareci-lhe que pusesse na mala uma boa quantidade de partituras de nossos principais compositores, como presente para o Conservatório…

         A Master Class virou um curso de uma semana de duração… e seria ocioso falar sobre o seu sucesso. O entusiasmo e o carinho com que a Mestra foi cercada pelos professores e alunos contribuíram sem dúvida para aumentar o seu ânimo.E é desnecessário acrescentar que ao longo desses dias voltei a insistir com ela para que realizasse um concerto em uma sala marroquina de prestígio. Sempre em vão, porque seguia obstinada em não voltar a tocar em público. Mas, Hamdulilah, para os marroquinos, ou Graças a Deus, para nós, água mole em pedra dura, etc… Dona Belkiss, já emocionalmente mais forte, resolveu atender a meus apelos e aceitou realizar um recital na Sala Bahnini, em edifício anexo ao Ministério da Cultura. Mas onde buscar partituras para o recital? Ora, no Conservatório de Música de Rabat, ao qual ela havia doado um ano antes uma boa coleção delas…  Meu plano funcionou!!! Mas aí, sim, aumentaram as censuras de Liana, pois a pianista deixou de lado todo e qualquer passeio que não fosse, digamos, pelo mundo da música, ficando diariamente horas a fio colada ao piano… De qualquer modo, como nossa hóspede nos deu o prazer de sua visita pelo período de um mês, haveria ainda tempo suficiente para conhecer as belezas do país.

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       Capa do programa do recital no Marrocos

        E foram pernas para que te quero! Semanas de passeio pelo interior do país, norte-sul-leste-oeste, acompanhada por minha sogra que viajara com ela,  por Liana e por alguns outros membros da família que por lá estivam nessa mesma época. Inicialmente, foram a Fez, a cidade sagrada e ex-Capital do Marrocos, com a maior e mais labiríntica Medina do país. Depois, ao norte, de Tanger e Asilah a Al Ksar El Kebir, ou seja, Alcacer Quibir, onde o jovem Rei português D. Sebastião perdeu a famosa Batalha e a própria vida;  até Tetouan e Ceuta, um enclave espanhol em pleno território marroquino (como Melilla). Mais tarde, subiram os Atlas para visitar uma estação de ski em Ifrane (sim, em pleno Marrocos há neve no inverno,  a hora e meia de carro de Rabat, que está à beira no Atlântico!), descendo do outro lado da cadeia de montanhas e seguindo por uma linda região até a cidade de Ouarzazate, porta de entrada para o indescritível deserto do Sahara, seguramente uma das maravilhas deste nosso planeta. Continuando o périplo, foram até Marraquesh, a cidade mais badalada do Marrocos, com seus jardins fantásticos (como o do pintor francês Jacques Majorelle, comprado mais tarde por Yves Saint-Laurent), sua Medina de todas as cores e sons, repleta de riads encantadores, suas Mesquitas, seus palácios com pátios lindos e aprazíveis, e sobretudo a surrealista Praça Djemaa El-Fna, a mais movimentada do Marrocos, declarada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, e que a partir de cinco da tarde de todos os dias transforma-se num viveiro multicolorido de amestradores de macacos e encantadores de serpentes, engolidores de fogo e tatuadores de hena, artistas de rua, contadores de histórias, infindáveis barracas de venda de comida de todo tipo e um mar de turistas embasbacados diante de tanta novidade.

        Em outra arremetida, nossas viajantes foram a Essaouira, no litoral sul do Atlântico, conhecida como cidade do vento e por isso mesmo freqüentada por surfistas de todas as latitudes. Mas Essaouira é também a cidade da música Gnaoua, a inebriante música de transe para incorporação de espíritos, trazida da África subsahariana, constituindo hoje um dos aspectos relevantes do folclore marroquino. Finalmente, voltando a Rabat, visitaram a cidade de El Jadida, também inscrita na lista de Patrimônio Mundial da UNESCO, a antiga Mazagão dos portugueses, que ali ficaram de princípios do século XV a meados do século XVIII, e onde se encontram ainda hoje a surpreendente Cisterna Portuguesa e um antigo forte militar com suas imponentes muralhas e baluartes. A noventa quilômetros mais ao norte está Casablanca, a maior e talvez a mais sem-graça cidade do Marrocos, com seus mais de cinco milhões de moradores. O grande destaque é de fato a descomunal Mesquita Hassan II, construída nos anos de 1990, que pode abrigar mais de cem mil fieis. A cidade é também uma frustração para os românticos desinformados que vão até lá em busca do inesquecível Café de Rick Blane/Humphrey Bogart, dos acordes melodiosos de As time goes by, da beleza nostálgica de Ilsa Lund/Ingrid Bergman… Como sabemos, o clássico Casablanca, uma das obras mais românticas do cinema, filmado em plena Guerra(1942), foi prosaicamente realizado nos estúdios de Hollywood.

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       A impressionante Cisterna Portuguesa em El Jadida, a antiga Mazagão

  Essas vilegiaturas pela diversificada geografia e riquíssima história do Marrocos impressionaram bastante nossa hóspede. Tanto que, ao retornar ao Brasil, publicou três crônicas seguidas em janeiro de 2001 no jornal O Popular, de Goiânia, intituladas simplesmente Marrocos, Belo País, nas quais trata com pertinência e elegância de tudo aquilo que seus sentidos alertas registraram da paisagem física e humana, dos palácios ao deserto, dos trajes típicos ao rico artesanato, do infalível chá de menta ao delicioso cuscus marroquino. Vejam estas passagens:

         “Quando ouvia a expressão “prá lá de Marrakesh”, minha imaginação criava um conglomerado habitacional desordenado, longínquo, quase inatingível. Nada é menos verdadeiro! Marrakesh é uma imponente cidade construída num oásis, com exuberante palmeiral hoje oficialmente protegido da expansão urbana. Lá se realizam grandes torneios internacionais de golfe, e esportes de inverno são praticados no Alto Atlas, podendo também os turistas atravessar as montanhas e alcançar o deserto do Sahara.”

         No início da segunda crônica, comentava a visita a Fez: “Ainda na medina de Fez, levados pelo guia, penetramos numa grande sala de um palácio do século 14, transformado em cooperativa de tapetes. Nada nos preparou externamente para ali encontrar as majestosas formas arquitetônicas com sua riqueza de detalhes, assim como o belo revestimento de mosaicos coloridos, que o tempo não conseguiu desgastar.”

(…)  Os trajetos entre as cidades visitadas encerravam dois motivos de interesse: a paisagem diferente e mutável e a aquisição, em pequenas doses, de conhecimentos históricos do país, que nos iam sendo transmitidos pela capacidade de retenção e síntese do Embaixador Lauro Moreira.”

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                               Primeira página da terceira crônica sobre o Marrocos 

               Curioso que relendo agora uma passagem de um ensaio que escrevi há alguns meses, a pedido de nossa Embaixada em Rabat, sobre o tema O Brasil no Reino do Marrocos, para integrar uma coletânea a ser publicada sob os auspícios da Universidade de Rabat e da Embaixada, encontrei o seguinte parágrafo no capítulo referente às nossas atividades culturais:

 “   Além da assídua participação nos festivais, conseguimos ainda promover um sem número de atividades culturais isoladas, que mereceram sempre ampla cobertura por parte da media local. Para citar apenas algumas das mais importantes, lembraria a presença da consagrada pianista e Professora Belkiss Carneiro de Mendonça em Rabat, onde, a nosso convite, além de ministrar um curso de uma semana de técnica pianística e de interpretação de música erudita brasileira para professores e alunos do Conservatório de Música do Marrocos, realizou um inesquecível recital na Sala Bahnini em dezembro de 2000, no âmbito das Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil. Depois de apresentar um riquíssimo repertório de compositores brasileiros dos séculos 19 e 20, a Professora Belkiss concluiu seu concerto com a soberba interpretação da “Grande Fantasia Triunfal do Hino Nacional Brasileiro”, de autoria do compositor norte-americano Louis Moreau Gottschalk, falecido no Rio de Janeiro em 1869. Comentando o evento, publiquei um minucioso artigo no Le Matin du Sahara et du Maghreb, sob o título de   “Le Brésil, une histoire contée par la Musique”, no qual apresentava um panorama histórico da música clássica no Brasil desde seus primórdios.”  

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    Matéria publicada no “Le Matin du Sahara”, o principal jornal do Marrocos               

         Faltou dizer apenas o óbvio: o imenso sucesso do magnífico concerto, que encantou um público composto por autoridades governamentais, uma expressiva parcela do Corpo Diplomático estrangeiro, professores e alunos do Conservatório e um vasto público atraído pela generosa cobertura realizada pela mídia local através de rádios, televisões e jornais. Fechamos a noite com um grande coquetel que oferecemos na Residência em homenagem à extraordinária pianista. Mas preciso falar também de uma terrível frustração que senti quando verifiquei que a gravação do Concerto que havíamos providenciado ficara muito aquém do  desejável, o que levou a incrível pianista a repetir todo o programa no piano do Conservatório para que eu pudesse voltar a gravá-lo, agora com excelente resultado. Porém, o que sucedeu dias mais tarde, quando Dona Belkiss já tinha voltado ao Brasil, foi imperdoável: uma noite entrou ladrão na Residência, carregando vários aparelhos de som e imagem, além de 540 CDs de minha coleção (!) e, o que mais me doeu, o minidisc (ainda sem cópia) com o original da nossa gravação do Conservatório! Dá para acreditar?

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Coquetel em homenagem à Concertista na Embaixada do Brasil no Marrocos  

        Decorrido quase um ano dessa primeira viagem, tivemos a alegria renovada de uma segunda visita de nossa amiga querida. Desta vez, não houve recitais nem master-classes e nem insistências do anfitrião, mas apenas novos passeios e a prolongada oportunidade de um convívio delicioso.  Ao cabo desta segunda visita, em novembro/dezembro de 2001, entrei de férias e, antes de acompanharmos nossa hóspede   em sua viagem de volta ao Brasil, com uma escala de uma semana em Paris, ocorreu um fato de menor importância mas que acabou alojando-se em minha memória afetiva até hoje. Estávamos certo dia almoçando na Residência quando Dona Belkiss mencionou que estava prestes a lançar um novo CD e que gostaria de ouvir alguma sugestão de título. Perguntei-lhe se era só de música brasileira e ela disse que não, que de brasileiros havia apenas Villa-Lobos e Guarnieri, entre dez outros estrangeiros, de Liszt a Schubert e de Kabalevski a Debussy, com seu Clair de Lune. Nesse momento, pedi-lhe que se virasse para um quadro na parede, um óleo de Dely, ótima pintora brasileira de São Paulo, e que imaginasse aquela imagem penumbrosa na capa do CD, com   o nome da intérprete no alto e embaixo apenas as palavras Clair de Lune. Ela gostou da sugestão, eu fiz a foto do quadro e o lindo disco foi lançado.

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                   Capa de CD com quadro da pintora Dely Sampaio  

DE NOVO EM BRASÍLIA

         Em dezembro de 2003 aceitei o convite do Ministro de Relações Exteriores para voltar ao Brasil e assumir a Direção Geral da Agência Brasileira de Cooperação, onde permaneci até 2006, quando então fui removido para Lisboa, como o primeiro Embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, meu derradeiro Posto na Carreira Diplomática.  Nesses três anos de Brasília, voltamos naturalmente a amiudar os contatos com nossa amiga querida. Mas um simples episódio ocorrido logo de nossa chegada a Brasília deixou-me extremamente tocado: ao telefonar à sua casa, e enquanto esperava que ela viesse ao telefone, ouvi uns acordes de piano.  Ao saudá-la pelo definitivo retorno à música, ouvi então a seguinte preciosidade: Mas, Lauro,  fazer o quê, depois que você voltou a me inocular o micróbio?… Nunca mais esqueci essa exclamação, que me emociona até hoje.

        Em 2003, Dona Belkiss foi especialmente convidada a participar das homenagens ao seu amigo e admirador Camargo Guarnieri, por ocasião do décimo aniversário de sua morte, gravando, como já mencionado, dois CDs na Sala São Paulo, (O Piano de Camargo Guarnieri e As Valsas para Piano de Camargo Guarnieri), nos quais foram incluídas algumas peças inéditas. Enquanto isso, na Rádio Nacional do Marrocos eu ouvia, extasiado, uma gravação feita por mim, em meu apartamento na Praia de Botafogo no Rio de Janeiro, 36 anos antes (!) com o Poeta e meu padrinho de casamento Manuel Bandeira, lendo 25 poemas seus. Os leitores deste Quincasblog já conhecem a história dessa gravação, portanto vou poupá-los de uma repetição, limitando-me apenas a lembrar que em 2004, já de volta ao Brasil, lancei o CD Manuel Bandeira: o Poeta em Botafogo, cujo texto de apresentação concluía assim:

        “Concebi este projeto de edição de um CD como mais uma homenagem ao Poeta Manuel, Bandeira do Brasil, na expressão de Drummond. Trata-se naturalmente de um documento histórico, único, e de imenso valor para os amantes da poesia e para a própria memória cultural do Brasil.

Meu Poeta,

Para participar desta homenagem, resolvi convidar também o seu amigo, admirador e vizinho aí no Céu, Camargo Guarnieri, que musicou tantos de seus poemas. Aqui estão várias peças dele para piano todas lindas, algumas inéditas na interpretação perfeita dessa grande dama do piano brasileiro, tão admirada pelo próprio compositor, Belkiss Carneiro de Mendonça.

E além disso, Manuel, resolvi acrescentar, à sua leitura, a minha leitura de outros tantos poemas seus, tudo em seu louvor. Como você se lembra, eu também sempre gostei de dizer poemas. Sobretudo os seus.

Brasília, 18 de setembro de 2004.

         Esse CD mereceu uma surpreendente cobertura da imprensa, com matérias amplas nos grandes jornais do país e nas principais revistas semanais, além de extensas entrevistas no rádio e na televisão. Basta mencionar a matéria apresentada durante um bloco inteiro do Jornal Nacional, da Rede Globo, com entrevista minha e do então Presidente da Academia Brasileira de Letras, o poeta Ivan Junqueira. A repercussão foi tanta que decidi criar um recital baseado nos poemas do disco, com a voz de Bandeira, a minha declamação e nove peças breves do CD interpretadas por Dona Belkiss, intercaladas com os poemas ditos por mim. Cheguei mesmo a convencê-la a participar ao vivo do espetáculo, em uma turnê que iniciaríamos no Teatro R. Magalhães Jr., na sede da própria  ABL, abrangendo depois várias cidades de São Paulo, Goiás, Minas e Paraná. Infelizmente, porém,  o destino não aprovou nossa maravilhosa iniciativa: minha adorada pianista nos deixou antes de a iniciarmos. Foi então substituída por Sónia Maria Vieira, também uma grande artista e minha amiga de toda a vida.

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   Matéria publicada no jornal O Popular, de Goiânia

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                        Segundo Caderno do jornal O Globo, do Rio de Janeiro    

 Matéria publicada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro

        Ela estava tão animada que resolveu gravar um novo CD, desta vez com peças mais leves, extraídas do repertório da música brasileira de salão, o que achei ótimo. A certa altura, ela começou no entanto a querer desistir, achando as peças um tanto “ligeiras demais”. Foi então que tentei convencê-la do contrário, alegando que embora de menor complexidade essas peças tinham também seu valor, claro. E arrematei: Dona Belkiss, para que haja montanha é preciso haver planície; Beethoven ou Guarnieri não tiram o valor de um Eduardo Souto ou do delicioso Ernesto Nazareth. O importante é haver qualidade na planície… Ela voltou a animar-se e começamos a pressioná-la para iniciar logo a gravação, que a meu ver deveria ser feita em sua própria casa e em seu magnífico Steinway. Convoquei para a empreitada nosso amigo Luis Chaffin, instrumentista, arranjador e diretor musical do Grupo Solo Brasil, que se encarregou de levar o técnico de som e uma aparelhagem adequada. Faríamos as gravações a partir da meia-noite e pediríamos ao Serviço de Trânsito para desviar a rota dos poucos ônibus que passavam em frente da casa àquela hora tardia. Mas aí, houve o problema da afinação do piano, ou seja, ninguém senão o Balança (era o nome do seu afinador)  podia chegar perto daquele piano, e o Balança morava em São Paulo (Campinas), e o Balança era demasiado ocupado e requisitado, não tinha como viajar de urgência a Goiânia… etc. O tempo passava, o Balança não chegava e agravação se adiava. Quando um dia estava tudo acertado, o irmão do Balança sofreu um infarto e o Balança tinha que tomar conta dele e já não sabia quando poderia viajar… Um drama, que infelizmente não chegou ao fim e a gravação não se realizou.

         Naquela época, íamos com mais frequência a Goiânia para estar com Dona Belkiss e  meus parentes ,  e por vezes viajávamos juntos a outras cidades, como Goiás Velho e até Parati, no Estado do Rio. E ela passou a ir mais a Brasília, sobretudo em aniversário meu ou de Liana, ou em jantares e recepções que oferecíamos aos amigos. Já no exterior, a última vez que nos vimos foi em Quebec, no Canadá, em uma viagem minha a trabalho, e dela a convite do Governador do Estado em visita oficial àquele país. 

  

 

A IMENSA TRISTEZA DA PARTIDA      

        Pouco tempo depois dessa viagem ao Canadá, na manhã no dia 25 de junho, sexta-feira, Dona Belkiss me comenta ao telefone que o seu grande amigo de juventude Benjamim Roriz, residente em Brasília, comemorava naquele data as Bodas de Diamante e que fazia absoluta questão de sua presença. Ela no entanto, disse, não se sentia muito animada a enfrentar o desafio. Até que o insistente aqui, ao cabo de uma longa conversa, conseguiu convencê-la, comprometendo-se a buscá-la na Estação Rodoviária e acompanhá-la à Missa das Bodas. Assim fizemos e depois fomos para casa, onde ela se comprometeu a ficar até domingo à noite. No dia seguinte conversamos toda a manhã sobre a poesia de Fernando Pessoa e um novo DVD que eu estava preparando; em seguida passou alguém para buscá-la para o almoço festivo, do qual ele regressou já querendo ir para a Rodoviária tomar o ônibus de volta para Goiânia, a despeito de nossos rogos e protestos. Dizia-nos que precisava estar em Goiânia no domingo cedo para preparar sua crônica semanal para O Popular. Nós então a deixamos na porta do ônibus das 19hs, com muita pena e já com saudade.

        No domingo à tarde esteve com ela em sua casa o nosso amigo Fernando Cupertino, e encontrou-a muito bem. No dia seguinte pela manhã ela tardou a descer para o café. Foi quando Malá, sua dedicada ajudante e permanente companhia, decidiu subir ao quarto para ver o que se passava. E foi tudo horrível: Dona Belkiss estava caída atrás da porta, vítima de um AVC que a levou a um estado de coma. Viajamos atordoados para Goiânia, fomos direto para o Hospital, mas não tive a coragem suficiente para subir ao quarto. Tenho certeza de que ela relevou minha covardia.  Liana me representou, não apenas nesta mas em outras vezes em que lá estivemos. Meses depois, no dia 17 de novembro, estávamos todos no cemitério Santana, levando nossa amiga querida para sua última morada. RIP

 

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                                                                                                    **********************

 

 

 

4 Comentários

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4 Respostas para “A GRANDE DAMA DE GOIÁS

  1. andreate

    Querido amigo, Obrigada por escrever sobre Belkiss com tanta poesia e encanto! LIndo texto! Parabéns pelo encontro de vocês dois, duas personalidades que por andam ficam as rosas. Feliz 2019. Beijo para você e Liana.

  2. Sandra Maria

    A Pianista e o Embaixador

    O encontro da Pianista e do Embaixador não se deu em terra goiana, embora situada em Goiás, onde nasceram. Quisera o destino que assim fosse, pois para ambos, o caminho se abriria promissor para os passos que dariam juntos. Ele, em função cultural em Brasília, ela, prestes a extrapolar o Brasil.
    Afirma Renato Mendes que, Lauro Moreira, na carreira diplomática, sempre exaltou a função da diplomacia como meio de irradiação cultural. O seu discurso diplomático, a plataforma. Nas palavras de Lauro “O diplomata tem este dever sagrado de dar testemunho de sua cultura. E esse testemunho não se limita apenas a realizar exposições ou promover artistas; fortalecer o diálogo cultural é projetar a alma do país. Neste ponto é mais que um instrumento, é uma das finalidades da diplomacia. Neste caso, o meio é o fim. A mensagem é o meio.”
    Assim, Lauro estava pronto para o encontro.
    Afirma Alba Dayrell, que Belkiss Spenzieri Carneiro de Mendonça foi uma “pianista educada para gal¬gar o mais al¬to pa¬ta¬mar no mun¬do da música”. Belkiss herdou a música no sangue, viveu musicalidade desde a mais tenra infância, trabalhou seu talento com esforço, dedicação e inovação.
    Assim, Belkiss estava pronta para o encontro.
    Quando a arte, que se sentia em casa no gabinete de Lauro, no Itamaraty em Brasília, abriu a porta para Belkiss entrar, em 1986, o encontro se deu, e muitas maravilhas se deram. Quando Belkiss se foi, em 2005, a arte e Lauro choraram juntos.
    Mas não antes que Belkiss e Lauro, sorrissem juntos, brilhassem juntos, acontecessem juntos. Pelo Brasil e pelo mundo. Por nós, amantes da cultura, da poesia e da música.
    Lauro e sua esposa, Liana, se encantaram pela grande dama “doce, educada, sensível, leal, elegante, culta, talentosa e generosa, embora de indisfarçavel modéstia e simplicidade”, nas palavras de Lauro.
    Belkiss, por sua vez, também se encantou com o cavalheiro Lauro, sua sede pela arte, seu entusiasmo pela sua difusão. Na sua crônica “Mãos dadas” (nome do CD em que Lauro interpreta poemas da língua portuguesa), ela expressa o imenso carinho e a admiração verdadeira que sentia pelo embaixador da cultura.
    Eu, que tive o privilégio de conviver com Dona Belkiss por muitos anos, como aluna de piano do Conservatório de Música, que tive a honra de tê-la como Patrona de minha turma de graduação em piano na UFG, que tive a alegria de tê-la como amiga de minha família, posso entender, e bem, a emoção e a magia do encontro dela com Lauro. Isso, porque, eu, também, tive e tenho o privilégio, a honra e a alegria de conhecer, conviver e desfrutar da amizade de Lauro. Não com a frequência que eu gostaria, mas, com a intensidade de momentos importantes.
    Assim é que, repito, aqui, o que já disse ao Embaixador Lauro Moreira.
    “Lauro, meu amigo. Estou absolutamente encantada com seu relato “A grande dama de Goiás”, publicado no seu quincasblog, em 28 de dezembro de 2018. Sua história e a de Dona Belkiss se mesclam, tecidas pelo elo comum da cultura e da arte e pela força de uma admiração recíproca e de um querer bem que salta aos olhos. Se você abriu caminhos para ela, ela iluminou os passos que trilharam juntos. Se você estava nos lugares certos para fazê-la brilhar foi porque sua inteligência e amor pelo saber e a cultura o colocaram lá”.
    Como tinha mais a dizer sobre a excelência do texto “A grande dama de Goiás”, que é, além de uma pesquisa histórica, uma confissão sobre uma parceria entre almas gêmeas, coloquei, aqui, em palavras, a minha emoção.
    E não posso deixar, também, de colocar aqui meus agradecimentos, pois, ao conhecer a intensidade dos elos afetivos e artísticos entre Lauro e Belkiss, a dama e o cavalheiro, fui sacudida a repensar na importância da convivência prazerosa e frutífera entre pessoas que olham juntas na mesma direção. Mais encontros, antes que…
    Afinal, foi o Embaixador Lauro quem citou Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia de meus anos/ Eu era feliz e ninguém estava morto”.

    • Sandra Maria, comentários como este seu enriquecem muitíssimo qualquer matéria publicada no Quincasblog. Seus comentários tocantes e generosos, de quem também conheceu e conviveu tão de perto com Dona Belkiss, de quem a admirou tanto e tanto sofreu com sua partida, fazem de você uma verdadeira co-autora de tudo aquilo que, com muita emoção, escrevi sobre ela. Muito obrigado!

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